terça-feira, 23 de março de 2010

Síndrome de Alta Classe

A primeira vez que percebi estar diante de uma pessoa destas, o adjectivo surgiu-me nos lábios sem dificuldade. PEDANTE. Uma palavra tão simples, fora do meu dicionário desde que a aprendi, lá nos confins da infância. E no entanto, lá estava ela, surgida do nada e PERFEITA para adjectivar a pessoa que estava à minha frente.
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A sensação com que se fica equivale à necessidade de ir tomar banho. Pelo menos é assim que hoje percebi, quando, no final do dia, após uma troca de ideias sobre o que são as "boas maneiras" e já esquecida do assunto, do nada, este vem à lembrança. São estes os instantes em que as ideias ficam cristalinas, como uma revelação.
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Tenho uma amiga de infância que foi criada no seio de uma família com dinheiro. Factor que tenta minimizar, mas que traz sempre à baila. Diz ela que consegue detectar uma pessoa com boa formação só por observar os modos que tem à mesa e que certas coisas a incomodam bastante, chegando a sentir nojo dessa pessoa. Ora, dizer isto após observar uma amiga a levar um pedaço de bolo à boca com a ponta da faca não abona muito a seu favor, porque não é capaz de se conter e faz logo uma reprimenda. No decorrer do "debate" sobre boas-maneiras, falámos de outras ocasiões em que ela não deixou de fazer observações sobre a "falta de educação" de outros. Eu defendo que, num ambiente descontraído e na sociedade actual, muita coisa não pode ser conotada como sendo falta de educação. É apenas uma forma diferente de agir e, a meu ver, tem lógica e faz sentido. Colocar os braços na berma da mesa, por exemplo. É algo que se vê por todo o lado. Porquê se há de manter este gesto simples e inocente na categoria da "falta de educação", especialmente estando nós num ambiente descontraído, num café de esplanada? Na vida de correria que temos hoje-em-dia, muitas coisas deixaram de ter essa conotação pois não seria justo para com o quotidiano e as pessoas.
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"Falta de educação" são outras coisas. E não tem nada a ver com "berço". Embora entenda o que quis dizer quando empregou o termo "nível", distinguindo as pessoas dessa classe como sendo novos-ricos e ricos com tradição, discordo que é preciso receber "essa" educação para se endender o que significa. Entendo, mas não estou de acordo com algo que me parece incorrecto. Porque, nisto de "catalogar" as pessoas com mais ou menos etiqueta, o acto em si é já uma grande falta de educação. Não concordam? Assim como é fazer uma observação imediata e em voz alta. Se fosse eu a querer chamar a atenção de alguém para um comportamento menos adequado à mesa, fazê-lo-ia de forma discreta. Quando estivessemos a sós ou no momento, se necessário fosse, mas discretamente, numa pausa, ou pedia licença e iamos as duas à casa-de-banho (toillete, pronto!) "retocar" a maquilhagem :). Mas nunca dispararia assim, a seco, como a violência de um tiro: "Isso é falta de educação".
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Eis algumas frases que já a ouvi dizer:
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"Deve-se usar a faca e o garfo à mesa, isso é falta de educação"
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"Não se põe a mala em cima da mesa, é falta de educação"
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"Não se lê à mesa, é falta de educação"
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"Não se põe o guardanapo assim, é falta de educação"
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"Usas-te o guardanapo para limpar a boca e agora o nariz, isso é falta de educação"
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Ora... falta de educação não é também fazer estes reparos? Ainda mais porque muitos são injustos e, a maioria das vezes, perpectuados pela própria que os critica, segundos antes...
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É um estranho comportamento, que só agora no meu "momento de clareza" entendi que se prende com sensação de inferioridade para com uma realidade de dualidades. Ao mesmo tempo que se quer passar por pessoa humilde e simples, dentro dela existe a educação "do dinheiro", que a faz conhecer o "patamar superior" e, assim, um pouco petulante, lá do alto do castelo, olha para os vassalos que lavram a terra, lá em baixo... é um complexo. Que muitos têm. Conheço algumas pessoas que não conseguem parar de referir as suas origens "abastadas". Mas a maioria, quando as conheço um pouco melhor, revelam-se pessoas desagradáveis, que, pela aparência e tão somente por isso, DISCRIMINAM as outras. Se é isto o resultado de uma educação esmerada, facultada por se ter nascido no seio de uma família rica, então... fico contente com a minha, que tantos problemas me deu!
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Não resisto em partilhar aqui uma situação que observei. Num restaurante, uma amiga nossa que não ia almoçar e por isso estava sentada na mesa anexa que não tinha toalha de papel posta, estava a arrumar o jornal matutino que desejava ler desde que o comprara nessa manhã cedo, mas, por achar que não era o local nem a altura apropriada, começou a arrumá-lo. Aí sente um puxão e percebe que o mesmo lhe foi tirado das mãos, pela colega que, depois, irá dizer que é falta de educação ler à mesa! Claro que, primeiro leu o jornal, só depois, quando chegou o prato de comida, é que o pôs de lado e se saiu com esta, que, sinceramente, não entendi. No final, sentada na cadeira de lado, com as costas em contacto com a parede e após petiscar do prato alheio e encher-se de comida como uma burra, pega no pacotinho de açucar e dobra-o várias vezes para palitar os dentes.
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Falta de educação... é caso para dizer: diz o roto ao nu!
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Mas, convenhamos... não existe aqui um problema qualquer de pedantismo? Uma espécie de sindrome de "alta classe"? Que triste! A boa educação é algo que se define com simplicidade. Ou é a própria simplicidade em si. Existe outra sim, a formal, a cerimonial, a que se usa quando se vai jantar com o presidente da República, por exemplo! Mas são outros contextos que nada têm a ver com a pessoa ser ou não dotada de boa educação. O povo português, na sua maioria é simples e com raízes no campo, onde os costumes são, por si só, também simples e acolhedores. É até uma ofensa defender que o "bem receber" português das pessoas humildes é falta de educação, quando são um afago tão agradável ao coração! Que não morra o hábito com aqueles que nasceram em tempos que cada vez ficam mais para trás...

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