quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

A propósito do naufrágio do Costa Concordia


Como lisboeta que sou fez parte do meu crescimento a existência de um navio naufragado no Tejo. Nos anos 80 todos sabiam o que era o Tollan - um barco encalhado no rio Tejo. Não passava de uma protuberância visível entre as águas do rio, um casco virado ao contrário, mas a sua presença ali em frente ao Terreiro do Paço era já uma referência e, de certa forma, uma atracção turística. "Vamos ver o Tolan" passou a ser sinónimo de ir passear para a beira do Tejo no Terreiro do Paço. Faziam-se também piadas sobre a incompetência de algumas ideias do governo usando como comparação o Tollan e as inúmeras tentativas falhadas de remover a sua carcaça do rio. Poucos lhe sabiam a história, apenas apreciavam o inusitado da situação. De tanto tempo ali ficar, alguns diziam que jamais deixaria de ali estar. Mas um dia este porta-contentores Inglês desapareceu. Deixou de fazer parte da paisagem, deixou de pertencer ao rio Tejo.


Na sexta-feira dia 13 de Janeiro de 2012 (lá está esta data outra vez) o mundo ficou a conhecer outro naufrágio. Na costa Italiana junto à ilha de Giglio o Concordia, um grande navio cruzeiro cheio de passageiros embateu contra rochas, acabando por se virar e encalhar nas águas. Ao contrário do Tollan, não transportava contentores que precisaram ser removidos mas, como em qualquer tragédia marítima, vidas são ceifadas. No caso do Tollan, cujo naufrágio em Fevereiro de 1980 deveu-se a um embate com o cargueiro Sueco Barranduna, dos 16 tripulantes do navio cargueiro, quatro nunca foram encontrados. O Concórdia virou e a maioria dos passageiros foi evacuada mas também onze morreram e calculam-se 28 desaparecidos.


Há quase um século atrás, mais precisamente no dia 14 de de Abril de 1012, decorreu aquela que entrou na história como a tragédia mais mediática na história dos naufrágios de navios de passageiros. O Titanic.

Há 15 anos fiz entrevistas de rua para a escola e entre as perguntas de cultura geral encontrava-se esta: «em que ano afundou o Titanic?». Nenhum dos inquiridos soube dar uma resposta e alguns apenas tinham uma vaga ideia do que era o "Titanic". Fiz a pergunta intencionalmente. Sabia que James Cameron preparava-se para lançar um filme sobre o Titanic e quis saber até que ponto as pessoas, no geral, estavam familiarizadas com esta história, antes e depois do filme estrear. Quis ficar com um registo em vídeo do «antes» para comparar com o «depois» para então reflectir sobre a dimensão dos efeitos que um filme de Hollywood exerce sobre a noção dos factos históricos. Infelizmente a maior parte das pessoas leva tudo o que a ficção mostra à letra, mas ao menos esta serve para instruir, facultando factos e surpreendentes conhecimentos para algumas pessoas, que até então lhes eram desconhecidos.

Mas foi graças a esta tragédia do embate do Titanic - o infundável contra um Iceberg no meio do oceano Atlântico em 1912 que MUDARAM AS LEIS DE NAVEGAÇÃO por todo o mundo. Desde então todos os navios são obrigados a ter a bordo botes salva-vidas em número suficiente para todos os passageiros, entre outros grandes feitos e avanços para a segurança marítima que surgiram devido a esta fatalidade. E é por esta razão que o que aconteceu com o Concórdia é pouco desculpável.

Primeiro que tudo, este navio turístico de rota rotineira embateu contra um obstáculo que sempre esteve ali. Não foi com um icebergue, que se move pelo oceano. As rochas eram um obstáculo fixo e devidamente assinaladas em todas as cartas náuticas. É o mesmo que conduzir numa estrada familiar e amplamente conhecida e sair da rota para ir embater numa árvore ao lado de casa. Trata-se, claramente, de um caso de negligência do piloto do Concórdia, de cuja pinta nada gostei, pelo que observei num noticiário. Acidentes deste género não podem ser admitidos nos dias que correm, ainda mais um século após aquele que serviu de referência para a segurança marítima!

Já fiz parte da tripulação de um navio e por isso estou familiarizada com o estilo de vida a bordo.Uma vez por semana toda a tripulação tinha de efectuar o simulacro. A cada elemento era atribuído uma função e, em caso de problemas, bastava escutar-se o som de uma sirene e uma ordem a ser emitida, para se saber de imediato qual o comportamento a se colocar em prática.

Sabia qual era o meu papel de trás para a frente. Os exercícios eram executados com ligeireza e tranquilidade por se saber que se tratava de uma simulação, mas também com seriedade. No geral decorriam sempre bem. Mas muitas vezes nos interrogávamos o que realmente aconteceria se aquilo fosse de verdade. Para já, lidar com passageiros em pânico é diferente de qualquer simulação de um ou outro que se faça de difícil. Evacuar feridos simulados é diferente de o fazer com pessoas que realmente precisam de auxílio. Simular um incêndio e andar com máscaras contra o fumo a evacuar passageiros até os botes salva-vidas não é o mesmo que ter de passar pelas chamas reais e o calor em si. Só quando a tragédia acontece é que se sabe em que circunstâncias o navio fica, que objectos são atirados pelo ar, como se vai agir.

Numa dessas dezenas de simulações efectuadas e na brincadeira, um colega disse, sem ser a brincar: "isto é assim no simulacro porque se fosse verdade era cada um por si! Eu era o primeiro a saltar fora! Largava tudo isto, queria lá saber. Quero é salvar a minha vida". Outros riram em concordância.

Eu fiquei em choque. Não o demonstrei, sorri ligeiramente mas fiquei a matutar naquelas palavras. Devo ser muito ingénua pois tal atitude nunca me tinha ocorrido. Alguém tem de ajudar a evacuar com segurança os passageiros e conduzi-los até os respectivos botes salva-vidas, o mais ordenada e seguramente possível. E cabe à tripulação, treinada, fazê-lo. A partir do momento em que se aceita fazer parte da tripulação de um navio, assume-se essa responsabilidade.

Mas, até mesmo no Titanic, existiram casos de motim entre a tripulação e casos de desrespeito entre passageiros. Decerto que sim, embora seja muito conhecido o estoicismo da maioria destas pessoas, em particular o dos membros da orquestra que ficou a tocar música até perceberem que afinal iam mesmo afundar e morrer. Conforme dita a lei dos homens e, a meu ver, a moral mais do que qualquer outra coisa, tentaram seguir a ordem «mulheres e crianças primeiro». O que na triste realidade do Titanic, que não tinha botes salva-vidas suficientes para todos os passageiros, significava, embora poucos o soubessem, a morte para os que ficavam. Todos, muitos até o último momento, acreditavam que o navio jamais iria ao fundo. A propaganda sobre as suas características inafundáveis, sobre a sua capacidade de permanecer a flutuar mesmo com três dos compartimentos do casco inundado era do conhecimento geral, desde a classe superior à inferior. E por isso a alguns foi poupado o desespero antecipado, o medo, até que perceberam que tinham de fazer algo para se salvarem.

O capitão, que ia reformar-se após aquela viagem inaugural, soube o que ia acontecer e tomou a decisão que, mais uma vez, acho que é mais moral que outra coisa, de ser o último a sair do navio. Ou no caso dele, tomou a decisão de ir ao fundo com o navio. Quem dera a ele que os outros pudessem se salvar e só ele fosse a vítima...

Mas este capitão do Concórdia nada tem a ver com o Capitão Smith do Titanic, nem com qualquer um que povoa o nosso imaginário colectivo sobre o que deve ser o comportamento de um verdadeiro capitão de um navio em naufrágio.

Numa conversa via rádio com a capitania, tida durante a tragédia e que passou no telejornal, Francesco Shettino afirma que já devem ter evacuado todas as pessoas do navio e que acha que só resta ele. Com a insistência da capitania, que precisa de saber se TODOS os passageiros já tinham sido evacuados e se a tripulação também, Francesco já diz que acha que faltam umas 300 a 400 pessoas. Como se isso não fizesse diferença!
Para quem deve ser o último a sair do navio, Shettino revelou estar mais preocupado com a própria pele do que em ter a certeza se os passageiros e tripulação tinham sido evacuados. Mais tarde vim a saber pelas notícias que ele saiu do navio, segundo disse, "tropecei e cai num bote salva-vidas"!

Bem, que descaramento! Está na cara dele e qualquer um pode perceber. Julgo que não tem desculpa. Este capitão conduziu o navio até às rochas por negligência e depois só pensou em salvar a própria pele, mantendo-se no navio só o tempo necessário para parecer que cumpriu o seu dever. Nem sei se teve um papel activo e determinante na evacuação dos passageiros mas tenho sérias dúvidas.
Ao que parece pelo que li hoje numa revista e de acordo com o relatório de dois passageiros portugueses a bordo, o capitão também não se deu ao trabalho de efectuar um simulacro.



Como é que as pessoas, em pânico e a querer saber onde estão os familiares que não estão ao seu lado no momento da tragédia, se vão comportar? "Quebramos uma janela no corredor e agarramos coletes salva-vidas num corredor, como não havia muitos, as pessoas brigavam e os tiravam umas das outras" - contou aos jornais italianos Antonietta Simboli, natural de Latina, perto de Roma, sobre o naufrágio do Costa Concórdia. "Foi um momento caótico, todos empurravam, tentavam passar por cima das pessoas para encontrar uma boia", declarou Amanda Warrick, ao canal de televisão americano CNN.

E como contrariar a tendência das pessoas em regressar à cabine para recuperar os pertences que lhes são queridos e valiosos ao invés de cumprirem as ordens de evacuação? Lição número um: fica tudo para trás! A prioridade é conduzir o mais rapidamente possível e em segurança todos os passageiros para fora do navio. Os bens materiais não têm qualquer relevância. Pelo menos devia ser...

Ainda dizem que Cristóvão Colombo era italiano... ah,ah,ah! Ainda bem que não era, porque estaria a dar voltas no túmulo de tanta insensatez conterrânea.
E é assim que a ilha de Giglio ganhou o que outrora o Tollan foi para Lisboa... o seu navio encalhado. Agora o tempo dirá como irão remover os destroços e que danos as rochas, o fundo do mar e a população circundante vão sofrer devido à insensatez, irresponsabilidade e negligência deste «comandante».